(In)Felizes coincidências

domingo, outubro 29, 2006

Uma abordagem ao jornalismo cidadão

Jornalismo cidadão é o jornalismo feito pelo cidadão. Do inglês citizen journalism, ou ainda grassroots journalism, jornalismo participativo, jornalismo colaborativo ou jornalismo open source, ganhou força na Internet após o surgimento das ferramentas de edição e publicação como blogs e ainda após a popularização de novas tecnologias como telemóveis equipados com câmaras digitais.

A origem desta modalidade jornalística remonta aos Estados Unidos com as experiências do public e civic journalism. O primeiro foi uma resposta à perda de leitores da imprensa escrita na concorrência com os canais de televisão e também uma maneira de impedir o controlo, cada vez maior, das máquinas partidárias sobre o debate político nos média. Era necessário contrapor a crescente desconfiança dos cidadãos em relação aos média noticiosos e à actividade política. Este novo jornalismo pretendia impor uma nova agenda de opinião e tornar-se o intérprete dos cidadãos quanto à hierarquia dos problemas e à escolha das soluções pela comunidade.

Apesar de não haver um marco fixo para o nascimento desta actividade, a Wikipédia cita que o movimento começou a ser desenhado após as eleições presidenciais de 1988 nos EUA, em virtude da desilusão popular com a forma como o processo tinha sido conduzido pela imprensa tradicional. Na verdade, o conceito começou a ser aplicado em diversas partes do mundo, simultaneamente e com destaque, a partir de 2000, com a expansão dos recursos tecnológicos e de comunicação disponíveis, como já foi referido anteriormente.
Chama-se jornalismo cidadão a todo “o acto de os cidadãos terem um papel activo no processo de recolha, reportagem, análise e disseminação de notícias de informação. O objectivo desta participação é fornecer informação independente, fiável, rigorosa, de grande alcance e relevante que uma democracia requer.” (Bowman e Willis)

Mas terá esta informação todos os pontos tocados por Bowman e Willis? O jornalismo tem uma relação intrínseca com a cidadania, esclarecendo a sociedade, mas o jornalismo dos cidadãos leva mais longe esta questão da cidadania. Os cidadãos jornalistas são “as pessoas antigamente conhecidas como a audiência.” (Jay Rosen)

Nemo Nox, um dos mais famosos integrantes da blogosfera brasileira, lança as seguintes questões: Porquê jornalismo cidadão? Um jornalismo praticado por cidadãos? E não são cidadãos os jornalistas a serviço dos grandes jornais e das redes de televisão? O que os diferencia, em termos de cidadania, dos outros jornalistas? Ou seria jornalismo cidadão somente um eufemismo para jornalismo amador? Ou para jornalismo independente de grandes corporações? Onde fica a fronteira que separa o amadorismo do profissionalismo ou a independência do corporativismo? Quais os factores a levar em conta? Qualidade, remuneração, certificação, reconhecimento governamental?

O objectivo do autor é denotar um estímulo ao debate do tema, mas cabe destacar que a expressão “cidadão” indica a figura de uma pessoa que não possui como principal actividade o jornalismo. Ele produz informação com o simples objectivo de informar. E esse é o conceito de cidadania que o termo procura transmitir. De acordo com J. D. Lasica, podem ser caracterizadas até seis categorias de jornalismo cidadão, que vão desde a simples participação da audiência em veículos tradicionais até os sites exclusivamente colaborativos.

Lasica, como já foi dito, divide o jornalismo cidadão em cinco modalidades, as quais passo a explicitar:

  • Participação da audiência em media noticiosos mainstream: comentários dos utilizadores a notícias, blogues pessoais, fotos ou vídeos captados através de câmaras pessoais ou notícias escritas por residentes de uma comunidade. Os jornalistas não podem estar em todo o lado, mas os cidadãos sim; é inevitável. Por isso, os media estão a abrir espaço aos cidadãos;
  • Sites independentes de notícias e informação: neste caso Lasica dá o exemplo de Drudge Report, o primeiro site a lançar o boato sobre Mónica Lewinsky. Este é um site completamente independente e o exemplo máximo de “I’m the media”;
  • Sites participativos de notícias: como exemplo, o autor enuncia o Oh My News, um site coreano, onde a maior parte das notícias são feitas pelos cidadãos;
  • Media leves ou ‘thin media’: notícias por mailing lists ou newsletters por email;
  • Sites pessoais de broadcasting: compostos por áudio e vídeo.
Antigamente, o jornalismo fazia o programa, definia o método e explicava a matéria. Os cidadãos recebiam, a sua margem de manobra era a posteriori. O provedor era um dos meios do cidadão actuar. Mas hoje em dia há uma participação do cidadão necessária para a construção da informação, sendo que os cidadãos não devem ser os que não sabem nada, não se devem limitar só a reagir à informação. Devem explicar, mas também aprender. O jornalista deve escutar o cidadão para valorizar a sua função, não deve ser apenas uma mera testemunha. O trabalho do cidadão deve ser escrutinado, avaliado, filtrado, mas usado como colaboração válida. O cidadão merece valor, porque como diz Manuel Pinto, professor na Universidade do Minho, Quem fez o valor do YouTube? Os nossos vídeos. O que faz o valor do Google? São os nossos posts. Estamos a alimentar os grandes grupos.
Uma perspectiva diferente tem Rupert Murdoch, que se refere a uma evolução do conhecimento, para reconhecer que o poder está a mudar dos editores e das elites para as audiências. O poder da informação está a escapar-se das mãos dos jornalistas. É importante pensar no factor tecnológico, é preciso tornar a tecnologia um facto do pensamento. Não há técnica neutra, enquanto cidadãos somos estimulados a saber aceder às tecnologias sem que nos interroguemos sobre o nosso estatuto enquanto utilizadores. No entanto, para Murdoch, este factor faz com que os jornalistas comecem a perder protagonismo e consequente domínio da situação.
Steve Outing explora o jornalismo cidadão em onze camadas, algumas delas em sintonia com J. D. Lasica.

1. Sites que se abrem a comentários do público – e, de acordo com Outing, não apenas nas notícias do site, mas em todas as secções. Outing cita os problemas que a maioria dos sites enfrenta quando começa a aceitar os comentários. Alguns leitores não entendem bem a razão daquela abertura e resolvem simplesmente desabafar contra o governo, contra outros leitores e até mesmo fazer propagandas pessoais ou de produtos ilícitos. Isso obriga a redacção a manter uma vigilância permanente sobre os fóruns de comentários, o que é um trabalho, desde o início, já perdido, pois o fluxo de comentários sobrepõe-se à capacidade de observação de uma redacção. Como solução, Outing sugere pedir identificação aos comentadores. De facto, diminui muito o número de comentários fora das regras jornalísticas, mas não os exclui completamente. Outra solução, que Outing não cita mas que parece bastante razoável, é deixar que os leitores possam escolher ou bloquear, os comentários de determinadas pessoas. Quem já acompanhou os fóruns de discussão por algum tempo sabe que alguns participantes frequentes costumam causar muita indignação noutros. Oferecendo a ferramenta de bloqueio de participantes, os leitores incomodados deixariam de ser "obrigados" a ler aqueles comentários e o participante que os lançou não se sentiria privado dos seus direitos. No entanto, não é conhecido nenhum site que ofereça essa ferramenta.

2. A contribuição do cidadão repórter – Leitores e participantes contam as suas histórias sobre determinados assuntos. Com o envio de fotos de um evento noticiado pelo site, como por exemplo quando os sites pediram e receberam depoimentos de pessoas que de alguma maneira foram afectadas pelos atentados de Londres. A questão defendida por Outing, no entanto, é que isso seja regra, não excepção.

3. Reportagens abertas (open-source reporting) – Outing descreve algumas modalidades da reportagem aberta, que consiste em produzir uma reportagem com a ajuda dos leitores. Um modo é divulgar em blogs pessoais, ou até mesmo enviar por e-mail o tema da reportagem, quem será entrevistado e qual a ideia da mesma. Depois é esperar uma resposta e, claro, dar ouvidos ao que os leitores dizem. Antes de imprimir ou publicar a matéria, convém debater o texto final com o grupo que ajudou o repórter nesse trabalho. No entanto, esse grupo de leitores não será personagem da reportagem.

4. Comunidade de Blogs – Sites de notícias que queiram aplicar o jornalismo cidadão deveram agregar uma “rede” de blogs locais ou de assuntos relacionados e, com isso, formar uma comunidade de leitores “blogueiros”. Não é um site de blogs, mas sim um conjunto de blogs seleccionados que possam interessar a outros leitores do site e que tenham alguma relação com o serviço.

5. Transparência na redacção – É um dos temas mais polémicos e que certamente causa maior resistência nas redacções. Outing sugere que a redacção tenha um blog aberto ao público, onde são comentadas, defendidas, criticadas e, principalmente, reveladas as formas de trabalho do jornal. Como e porquê foram tomadas certas decisões durante certas situações. De que maneira certas matérias foram investigadas e escritas. Mas essa ferramenta do blog de redacção, que segundo Outing pode ser apenas o blog do editor-chefe, vai muito mais além, pois precede o encerramento e a publicação dos textos, permitindo um maior envolvimento com os leitores. No entanto, nem todos os leitores têm tempo para conversar com os repórteres ou editores. Nem todos os leitores se sentem aptos a comentar notícias (por escrito, já que verbalmente todos o fazem). Portanto, essa ferramenta deve ser usada com um certo equilíbrio.

6. O site de notícias do leitor (versão editada) – é um dos resultados mais radicais do jornalismo cidadão. Um site de notícias feito com notícias dos leitores, mas com alguma edição por parte dos jornalistas. A sugestão de Outing é que esse site seja independente mas fique dentro do site de notícias principal do jornal que o promove. Dessa forma, pelo menos até que as duas coisas não se fundam, os leitores terão duas opções de leitura.

7. O site de notícias do leitor (versão não editada) – é a mesma ideia do item anterior, mas sem nenhuma interferência editorial. Os leitores postam os seus comentários, notícias, críticas, fotos e um sistema editorial organiza e apresenta todo o material.

8. Imprima tudo semanalmente – uma edição semanal, ou mais espaçada, impressa e distribuída gratuitamente com os conteúdos publicados pelos leitores nos sites editados e não editados. Alguns dizem que isso seria a solução para a quebra nas tiragens dos jornais impressos.

9. O híbrido jornalismo profissional + cidadão – jornais completamente feitos com a colaboração dos leitores, mas com o suporte, ajuda, e também redacção final de jornalistas profissionais.

10. Integração total entre jornalismo profissional e cidadão – um site ou até mesmo um jornal impresso, que una matérias elaboradas por jornalistas profissionais com outras enviadas e publicadas pelos leitores. A diferença desse modelo para o item anterior, é que neste caso, as matérias dos leitores não serão editadas ou reescritas. Serão publicadas ao lado das dos jornalistas profissionais, dando-lhes a mesma importância.

11. Jornalismo wiki – o exemplo mais radical de todos, que condensa todos os itens acima indicados. Outing sugere que o wiki derruba as fronteiras entre o profissional e o cidadão/amador. Ambos podem escrever, editar, apagar, reescrever e assim por diante, indefinidamente, uma reportagem. Outing considera que o wiki ainda não se consolidou, mas aponta benefícios que as empresas tradicionais poderiam obter ao adoptar a ferramenta nos seus sites. Um exemplo do poder do wiki foi logo após os atentados de Londres, o WikiNews trazia uma extensa página com quase todas as informações relevantes e importantes sobre o facto. Desde links para sites de fotoblogs, informações para o metro de Londres, depoimentos, personagens a links para outros sites noticiosos.
Há alguns sites noticiosos que recebem mais ou menos colaboração de cidadãos e são tidos como exemplos de sucesso a seguir. Alguns dos exemplos mais conhecidos são o Wikinotícias ou o OhMyNews.

O Wikinotícias é um projecto de notícias livre, onde qualquer pessoa pode escrever, criar, ampliar ou editar um artigo. Está disponível em mais de duzentos idiomas.

O OhMyNews é um ciber jornal coreano, fundado em 2000 e que defende a máxima de que “todo o cidadão é um repórter”. Foi o primeiro exemplo mundial a aceitar, editar e a publicar artigos dos seus leitores; apenas vinte por cento do conteúdo deste site é produzido pelo staff, enquanto que os restantes artigos são escritos por cidadãos.
A Internet, onde se está a operar a grande revolução comunicacional dos últimos anos, vai-se tornando, progressivamente, de todos. Mas a maioria das pessoas quer usar a Net para comunicar e, por muito que desagrade aos entusiastas do jornalismo cidadão, muito poucos serão os interessados em fazer jornalismo.

O jornalismo cidadão está a consolidar-se como uma tendência mundial. Após um período de maturação, o modelo que tem mostrado melhores resultados é o híbrido, onde jornalismo amador e profissional
se fundem. No entanto, há ainda muitas questões levantadas por este tema.
A tecnologia finalmente colocou ferramentas de produção e de publicaçãode jornalismo nas mãos dos cidadãos. Mas se produzir e publicar deixoude ser problema, a questão da comercialização ainda está longe de ficarresolvida. O jornalista cidadão obtém remuneração? Até que ponto o factorremuneração deve ser levado em conta na classificação de um produtojornalístico como jornalismo cidadão/amador? Existe compatibilidade com a profissionalização plena?
São perguntas suficientes para começar a discussão. Haverá alguém que tenha respostas?

~~Referências bibliográficas~~

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